Israel Souza[1]
O caráter conservador do
Brasil é ponto pacífico entre muitos autores, das diversas ciências sociais e dos
mais variados matizes ideológicos. Cada um a seu modo, tratam disso Gilberto
Freyre (Casa-grande & senzala),
Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do
Brasil), Florestan Fernandes (A
revolução burguesa no Brasil), Caio Prado Jr. (Evolução política do Brasil), Raymundo Faoro (Os donos do poder), Darcy Ribeiro (O povo brasileiro), para citar apenas alguns.
Momentos há, porém, em
que atravessamos a fronteira do prosaico conservadorismo e avançamos em campos
outros. Por vezes, avançamos no campo do progressismo, coisa rara. Por vezes,
no do reacionarismo, coisa perigosíssima. A meu ver, é nesse campo que ora
estamos avançando.
Ameaçando transformar a
“questão social” em “questão policial” novamente, certo candidato à presidência
segue em segundo lugar nas pesquisas de intenção de votos nestas eleições de
2018. Em que pesem as insanidades que fala, conta com o apoio de milhões e é
recebido como herói em alguns lugares. Michel Temer decretou intervenção
militar no Rio de Janeiro, reputando-a como “uma jogada de mestre”. Executaram
Marielle Franco, ativista social e vereadora da cidade do Rio pelo Psol, e uns
tantos comemoram o fato nas redes sociais. Enodaram seu nome com mentiras,
jogaram-no na lama. A caravana do ex-presidente Lula foi atacada com pedras e
balas.
Resumidamente, eis a atmosfera
sob a qual vivemos ou tentamos viver. A olhos vistos, a disputa política vai
ganhando dinâmica explosiva. Indisfarçavelmente, a luta de classes vai cedendo
espaço à guerra de classes. Estatal e civil, a violência avulta, avança,
desnuda. Parece confirmar-se a hipótese que levantei em meu último artigo. Estamos
transitando da política da militarização para a militarização da política.
Pavoneando-se,
a direita se jacta de seus preconceitos, ódio e violência. Não se esconde.
Expõe-se descomplexadamente, orgulhosa de si. Para ficar apenas em dois
exemplos. Lembremos do “movimento” Escola sem Partido questionando
juridicamente o critério que prevê a anulação das redações do ENEM que
desrespeitem os direitos humanos, disseminando mensagens de ódio ou qualquer
tipo de preconceito. Lembremos ainda de ruralistas, recentemente, sacando armas
e dando de chicote em manifestantes pró-Lula no sul do país.
A situação da esquerda e de
todos os que lutam pelas dignidade e emancipação humana é bem outra. Procuram se encontrar, afinar seus discursos e
estratégias de luta. Não raro, ativistas de direitos humanos têm que se
justificar, assegurando que não defendem bandido. Os que lutam por direitos
sociais se veem na obrigação, de quando em vez, de dizer que não são petistas.
Acuados em seus espaços de trabalho, afrontados em seus ofício e saber, professores
têm que provar que discutir temas sociais não é fazer doutrinação nem tampouco estar
a serviço de um dado partido.
Embora forçada pelas
circunstâncias, tanta justificativa não deixa de representar insegurança, uma
espécie de “complexo”. De externo, o constrangimento se vai internalizando,
atando, num só feixe, censura e autocensura.
Com efeito, o clima
ideológico-moral é tão adverso que até parece que a luta por justiça social
virou pecado, sinal de psicopatia, de “esquerdopatia”, como insinuam. Alguns
querem mesmo é transformá-la em crime, interditando a cidadania questionadora,
o exercício dos direitos políticos por outros meios além do voto.
Impossível caracterizar
tal cenário como conservador. E quem assim o faz, além de incorrer em equívoco,
julga mal o tamanho do perigo. Um momento assim, em que o humanismo mais pueril
ofende, ameaça os dominantes e seus consortes, é melhor definido como reacionário.
Não é conservação. É retrocesso!
A mistura de violência,
moralismo e anti-intelectualismo mostra que o fascismo grassa em nosso meio. Ontem
como hoje, na Europa como no Brasil, ele exibe seu anti-Iluminismo, exala seu
obscurantismo, sua sanha assassina. E nosso país, que chegou mal e tardiamente
à modernidade, agora a vê sendo proscrita, interditada mesmo em seus valores
progressistas mínimos. Nossas luzes que nunca foram lá muito fortes começam a
eclipsar, sufocadas sob as sombras desse neo-obscurantismo.
Que não reste dúvidas
sobre o período que atravessamos. Não se trata de jargão ou mantra. Como a
revolução, a reação fascista não se faz a partir de decretos. Ambas, a
revolução e a reação, são resultado de um processo de acúmulo de forças e
contradições em cuja manifestação, porém, já estão presentes como potência.
Infelizmente, os sinais do fascismo são inequívocos. Não há como tergiversar
quanto isso. Resta saber apenas até onde iremos nessa trilha.
Nesse contexto, seria
desastroso centrar todos os esforços - ou a maioria deles - em eleições e
candidaturas. Como ensinou Gramsci, a luta política se dá tanto no nível da
“sociedade política” quanto no nível da “sociedade civil”. Não há motivos para
privilegiar uma em detrimento da outra.
Ademais, depois do golpe
de 2016, a maneira de fazer política no Brasil não será mais a mesma. A
democracia já não é respeitada sequer em seus aspectos mais formais, mais
inofensivos. Ela continua sendo um espetáculo, mas um espetáculo que,
doravante, pode ser suspenso a qualquer momento.
Urge travar a luta de
classes no âmbito da cultura, dos valores, da ideologia. Apenas os de baixo
podem trazer configuração e luz novas a este obscuro quadro. E para isso é
preciso des-anatematizar o ideal de justiça social e liberdade. É necessário
que os que lutam por justiça não se sintam envergonhados, complexados, nem
sejam envergonhados por isso. É preciso clareza e seguranças nessa luta. Em
resumidas contas, é preciso não dar razão à desrazão.
[1]
Cientista social, professor e pesquisador do Instituto Federal do Acre/Campus
Cruzeiro do Sul, onde coordena os projetos de pesquisa Trabalho, Território e Política na Amazônia e Miséria Política no Brasil. Autor dos livros Democracia no Acre: notícias de uma ausência (PUBLIT: 2014) e Desenvolvimentismo na Amazônia: a farsa
fascinante, a tragédia facínora (no prelo). E-mail:
israelpolitica@gmail.com
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