Ambientalismo, não; reforma
agrária: as palavras certas para nossa luta
Em levantamento recente
(início de dezembro), a ONG Global Witness apontou que 78 “ambientalistas”
foram mortos no mundo neste ano de 2015 (Ao
menos 78 ambientalistas foram assassinados em 2015: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/internacional/1449685932_807960.html).
Segundo um porta-voz da ONG britânica, essas pessoas foram assassinadas por “lutarem
por seu direito a um ambiente saudável”.
Ainda de acordo com o mesmo levantamento,
em todo mundo, entre 2008 e 2012, período de alta dos preços de commodities, o número de mortes passou
de 40 para 147 mortes por ano. Em 2015, portanto, tivemos uma diminuição no
número de mortes dos “ambientalistas”.
Em 2014, Brasil e Colômbia
foram responsáveis por quase 50% desse total de mortes, sendo, por isso,
considerados os “piores países para a atuação de ambientalistas”. O Brasil
ficou no topo da lista (Brasil lidera mortes
de ambientalistas: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-lidera-em-mortes-de-ambientalistas-9896.html.
40% dos mortos são indígenas, vítimas da exploração madeireira, da mineração e das
hidrelétricas.
Não entrarei no mérito dos
números. Há muito, porém, o que refletir sobre a definição dos que foram
assassinados e sobre o motivo de suas mortes. Esse é um claro exemplo em que as
palavras não correspondem às coisas.
Em toda essa maneira de
falar e interpretar, há uma espécie de invisibilização, de acobertamento da
realidade pelas palavras. Para mim, esse é um dos grandes desafios da reforma
agrária na Amazônia nestes nossos dias. Precisamos nos valer das palavras
certas para falar de nossas lutas e de nossos objetivos.
O levantamento aqui em
questão fala de assassinato de “ambientalistas”, de pessoas que morreram lutando
por um “ambiente saudável”. Uma expressão plástica como esta sugere que pessoas
foram assassinadas por varrerem suas casas e lavarem seus lençóis, pois isso é
também zelar por um “ambiente saudável”. Talvez por desinformação, mas não
conheço nem um caso de alguém que fora assassinado por isso.
A verdade, porém, é que essas
pessoas (referidas naquele levantamento) foram assassinadas por se colocarem
contra os madeireiros, empreiteiros, mineradores e latifundiários. Foram
assassinadas por lutarem por suas terras, seus territórios. Numa palavra: estas
pessoas foram vítimas de conflitos agrários.
Não por acaso, a maioria dos
mortos era de indígenas e posseiros, pessoas que, mesmo quando têm seus
direitos reconhecidos pela lei, não os têm respeitados na prática.
Se tratamos tudo isso como
“luta ambientalista”:
1) encobrimos a realidade, borramos
importantes diferenças entre práticas e lutas distintas, e findamos por
romantizar a tragédia;
2) não conseguimos verbalizar e mostrar para
os outros nossas dores, nossos sonhos e lutas. É como se lutássemos no escuro e
em silêncio. Ninguém nos vê ou entende. Isso não é coisa de pouca monta. Cabe lembrar
que os avanços que a luta dos seringueiros obteve, sob a liderança de Chico
Mendes, se deveu ao fato de ter rompido o cerco, de ter comunicado ao mundo sua
luta. Se sua luta tivesse se restringido ao Acre, aqui mesmo ela teria sido
silenciada e hoje, no mundo e mesmo na capital Rio Branco (AC), provavelmente
poucos saberiam quem foi Chico Mendes;
3) usamos a linguagem de nossos inimigos.
Assim sendo, é como se nossos inimigos falassem por nossas bocas. As palavras
que sairiam de nossas bocas não seriam nossas, e sim deles. Nossa língua
contaria, não nossa história, mas a história deles, do ponto de vista e dos
interesses deles. Ao fazer isso, usar a linguagem de nossos inimigos, estamos
nos rendendo e dando mais forças a eles, pois assumimos a visão que eles têm
das coisas.
Por isso é que, sob o manto
do “ambientalismo”, eles vêm sufocando o que realmente está em jogo: a luta por
terras e territórios com todas as riquezas (materiais e imateriais) que eles
encerram. Uma luta demasiado antiga e, não obstante, atualíssima. É o contínuo
avanço do capital para se interpor entre o homem e a natureza, buscando lucrar
sobre as duas fontes de riqueza: o trabalho e a natureza. De um lado, os que
precisam do território para sobreviver. De outro, aqueles que querem lançar mão
deles apenas aumentar suas fortunas.
Os primeiros não lutam
apenas por quererem “um ambiente saudável”. Isso conta, obviamente. Mas lutam,
sobretudo, porque disso depende sua sobrevivência física e cultural. Os últimos
não afrontam os direitos desses a seus territórios por não quererem um ambiente
saudável, mas porque querem suas riquezas.
O
ambientalismo dos governos federal e local
Para termos clareza quanto a
isso, vejamos a retórica e a prática dos governos federal e local. Comecemos
lembrando que o governo federal alardeava que seria liderança na COP21 (conferência
sobre o clima que ocorreu recentemente em Paris), uma espécie de guia para os
outros países a respeito do que fazer em tempos de “crise ambiental” e
“mudanças climáticas”. Ocorre que, dos anos de chumbo para cá, o governo Dilma
foi o que menos realizou assentamentos e reconheceu Terras Indígenas e
quilombolas. E ainda. Até meados de dezembro de 2015, o Centro de Documentação
Dom Tomás Balduíno, da CPT, registrou o maior número de assassinatos no campo
desde 2004 (NOTA PÚBLICA: O momento político
atual e a surdez do governo Dilma: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/destaque/3040-nota-publica-o-momento-politico-atual-e-a-surdez-do-governo-dilma).
Foram 46. Não por acaso, 44 destes foram na Amazônia, região com vastos e ricos
territórios.
Segundo o já citado levantamento
da Global Witness, tivemos, em todo o mundo, uma diminuição no número de mortes
de “ambientalistas” em 2015. No Brasil, porém, seguimos na contramão. Aqui,
aumentou o número daqueles que lutam por seus territórios e contra o avanço do
capital sobre a natureza. E a culpa por isso recai, maiormente, sobre as costas
do governo.
É consabido que, onde as
populações locais têm efetivamente seus direitos territoriais assegurados, a
depredação da natureza é barrada. No entanto, o governo federal segue numa
linha de favorecimento a atividades sabidamente danosas à natureza, como
construção de hidrelétricas, mineração e agronegócio. Kátia Abreu, rainha do
agronegócio e inimiga declarada de populações locais, é ministra e, segundo
dizem (as boas e as más línguas), uma das melhores amigas da presidente.
Por tudo isso, não causa
estranheza que, sob este governo, por sua ação e inação, campeie o genocídio de
indígenas no Mato Grosso do Sul e sejam forjados a PEC 215, o Novo Código de
Mineração, a modificação do conceito de trabalho escravo, fragilização e enquadramento
de órgãos fiscalizadores, aceleração e deturpação de licenciamentos ambientais,
bem como as CPIs da FUNAI e do INCRA (em Brasília) e do CIMI (em Mato Grosso do
Sul).
Seguindo a mesma lógica do
Novo Código Florestal, o conjunto de tudo isso procura assegurar o acesso do
capital aos mais diversos e ricos territórios, fragiliza os direitos
territoriais das populações locais e criminaliza todos aqueles que ousem se
levantar contra essa ordem de coisas.
Por seu turno, para
justificar sua política de “desenvolvimento sustentável”, o governo local se
apropriou da figura de Chico Mendes e se fortaleceu dividindo o movimento dos
trabalhadores rurais, cooptando uma parte e isolando a outra[3]. Como sabemos esta é uma
política que, sob a justificativa de preservação ambiental, tem favorecido
grandes madeireiras (todas de fora), algumas ONGs e o próprio governo, através
de financiamento externo.
O Estado vai se afundando num
“círculo vicioso da dívida pública”. Os empréstimos são vultosos. E nós nunca
vemos seus benefícios. Sequer sabemos onde foram investidos. Todavia, para
pagá-los, o governo usa a floresta e os tais manejos sustentáveis. Sob este
governo, que já vai contar 20 anos usando a abusando da figura de Chico Mendes,
os índios tiveram o processo de demarcação de suas terras paralisado. Muitos agentes
governamentais e ongueiros vão até eles, tentando convencê-los a aceitar políticas
de crédito de carbono. Prometem milhões para isso.
Por outro lado, quem aceita
o manejo pode derrubar centenas e até milhares de ha de florestas. Enquanto os
outros, a maioria, não pode nem cortar uma árvore para uso doméstico, como
construir casa, cercar o terreno e coisas assim.
Sabemos que não apenas isso.
Caçar e colocar roçado para comer virou crime. Pode dar multas impagáveis e
cadeia. Para citar apenas um caso: sabemos daquele seringueiro que, por cortar
5 árvores para uso doméstico, recebeu um multa de mais de 300 mil reais.
Sob a política do
“desenvolvimento sustentável”, os inimigos da floresta foram transformados em heróis;
e os amigos da floresta, aqueles que efetivamente cuidam dela, foram
transformados em bandidos, criminosos.
Dizendo estar realizando o
sonho de Chico Mendes, que foi transformado em “ambientalista”, o governo local
diz que todos (madeireiros, índios, empresários, seringueiros, posseiros etc.)
estão unidos pela preservação da floresta. Segundo ele, já não há problemas com
a reforma agrária. Não há mais luta pela terra. Quanto a isso, ainda de acordo
com o governo, estão todos satisfeitos. A preocupação de todos é ambiental, e
não agrária. E assim, mais uma vez, o ambientalismo encobre nossa luta,
justifica a opressão e a exploração.
Como depende de propaganda
enganosa a respeito desse modelo de desenvolvimento para atrair investidores e
assegurar empréstimos, é imperativo para o governo silenciar qualquer
reivindicação pela terra, pois isso mostraria que os problemas agrários não
foram resolvidos. Ao contrário. Vêm até se agravando por força de sua política
de desenvolvimento sustentável.
É necessário reafirmar nossa
luta e seu sentido. Ter claro que Chico Mendes não era ambientalista, e, se o
fosse, no sentido que o governo local propala, não teria sido assassinado. Chico
era seringueiro e socialista. Lutava pela reforma agrária e contra o capital, e
por isso foi morto. Foi sagaz ao perceber que, naquele momento, as pessoas não
se importavam com a dor dos seringueiros. Mas, se falassem em proteção da
floresta amazônica, iam se interessar. Isso já serviu. Não serve mais. É uma
armadilha. Devemos nos desvencilhar dela.
Pela visão ambiental, eles
falam em proteger a floresta. Mas proteger de quem? De nós, que sempre a
protegemos, e hoje somos tratados como criminosos. Pela visão ambiental, eles
falam em proteger a floresta. Mas proteger para quem? Para aqueles como os
madeireiros, que sempre destruíram (e destroem) a floresta, mas têm capital, e,
por isso, são amigos e patrões do governo.
Por
isso há que se dizer que, mais que um país perigoso para a atuação de
ambientalistas, o Brasil é perigoso para quem defende a reforma agrária. Aqui,
no Acre, a maioria dos ambientalistas (e suas ONGs) está irmanada com o governo
no intuito de expropriar as comunidades locais e garantir que o capital tenha acesso
irrestrito a seus territórios e riquezas. Aqui, o maior risco que a maioria dos
ambientalistas corre é ser bem remunerada pelo governo e pelos capitalistas por
seus prestimosos serviços.
Saber
pelo quê e por quem lutar
A polarização política que marca
a atual conjuntura torna nossos desafios ainda maiores. Muitos têm sucumbido a
ela. No último dia 16/12/15, indígenas tomaram o Congresso contra a PEC 215 e
contra Cunha, mas a favor da Dilma, por incrível que pareça.
Sim. Também eles, que vêm
sofrendo miseravelmente pelo abandono e pela violência, saíram em defesa da
presidenta, tratando o impeachment “como golpe”. Deixaram-se enredar na luta
entre governo e oposição, e tomaram as dores do governo, mesmo sem nada a
ganhar de ambas as partes.
Quanto a isso, o caso do MST
é ainda mais curioso e trágico. Sistematicamente, tem saído em defesa de Dilma,
mesmo que ela venha conduzindo o pior governo para a reforma agrária,
considerando governos militares e mesmo os do PSDB.
Será que o movimento leva
isso em consideração quando sai pelas ruas em “defesa da democracia”? Será que
deixou de compreender que, num país em que a concentração de terra é colossal,
a reforma agrária é um componente indispensável da questão democrática? Não
sei. Mas, pelo que vemos, hoje, para o maior movimento de luta pela terra da
história brasileira, a manutenção do governo lhe parece mais importante que sua
causa (a reforma agrária).
Precisamos vencer este
desafio de entender que a causa do governo não é a nossa. PT e PSDB não são
esquerda e direita, um defendendo os explorados e o outro, os exploradores. Tais
partidos não são senão as “alas vermelha e azul da direita brasileira”. Ambos
são golpistas. A polarização que protagonizam apenas expressa a miséria
política por que ora passamos, bem como a confusão que se abateu sobre as
forças populares.
É preciso abandonar, e de
vez, o medo de a “direita voltar ao poder central”. Ela nunca saiu de lá. E só
ganhou com os governos do PT. Ganhou mais partidos e defensores para suas
causas.
Os desafios da Amazônia
neste 27° ano da morte de Chico Mendes são os desafios que ele enfrentou em
vida: os desafios da reforma agrária. Dentre outras coisas, para sermos
exitosos nesta luta devemos assumir com clareza nossos objetivos, abandonar a
linguagem e a visão de nossos inimigos; devemos evitar as ilusões para com o
Estado, governos e partidos. A luta pela Amazônia é a luta da reforma agrária.
A luta pela reforma agrária não pode deixar de ser contra o capital e todas as
suas personificações e serviçais.
[1]
O presente texto é uma síntese da palestra que proferi na sede do Sindicato dos
Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na cidade natal de Chico Mendes (Xapuri),
em 22/12/15 ,
em razão do 27º ano de sua morte. Embora traga no título uma referência a um
conhecido livro de Foucault, a abordagem é bem outra.
[2]
Cientista Social com habilitação em
Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento
na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[3]
Dois eventos foram realizados em locais vizinhos, em Xapuri, em razão do 27°
ano da morte de Chico Mendes. Um deles, ocorrido na sede do sindicato, falava
de um Chico militante da reforma agrária, tratava dos desafios da reforma agrária,
da expulsão de posseiros que vem ocorrendo, dos desmatamentos, da repressão de órgãos
como Ibama e ICMbio etc. O outro, ocorrido no salão paroquial, bem ao lado,
falava de um Chico ambientalista cujos sonhos haviam se concretizado e exaltava
a política de desenvolvimento do governo local, calcada na exploração
madeireira.
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