Israel
Souza[1]
O Decreto presidencial 8.243/14,
que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema
Nacional de Participação Social (SNPS), acendeu paixões, dividiu opiniões. Em
razão dele, governo e oposição travam caloroso debate, um debate que muito diz
sobre o que eles entendem por “democracia” e sobre a atual conjuntura política
brasileira.
Em tese e em síntese, o
decreto propõe a criação de mecanismos de participação e controle social. Pelo
referido decreto, a “sociedade civil” seria “consultada” quanto aos rumos de “órgãos
da administração pública federal direta e indireta”, contribuindo para
“formulação, execução, monitoramento e avaliação” de programas e políticas
públicas.
Assombrada e mais que
rapidamente, a oposição reagiu. No Congresso, o deputado Mendonça Filho, líder
do DEM, apresentou um projeto com o intuito de suspender o decreto da
presidente[2]. Para o deputado, o
decreto é inconstitucional e invade a competência do Parlamento, pois a
democracia se daria “por meio de seus representantes no Congresso,
legitimamente eleitos”.
Ocorre que o “sistema
representativo” que temos longe está de ser democrático. Em pesquisa recente, procurou-se
avaliar a confiança que a população tem nos profissionais. Entre 32 profissões[3], a que tem menos confiança
da população é a dos políticos. De acordo com a pesquisa, estes senhores (e
senhoras) gozam de apenas 6% da confiança dos brasileiros[4].
Assim, é compreensível que, em
outra pesquisa, 61% dos entrevistados se dissessem contra o voto obrigatório.
Na mesma pesquisa, 57% afirmaram que não votariam “se tivessem essa opção”[5]. Afinal, como depositar o voto
(que é confiança) naqueles em quem não confiamos?
Ora, tomada em acepção
simples, democracia quer dizer governo da maioria. Mas o que fazer quando a
maioria - ou, pelo menos, parte significativa dela - nega o sistema
representativo? Por este prisma, a oposição no Congresso não está defendendo a
democracia, e sim um sistema antipopular e sem legitimidade. Segundo seus
interesses, é razoável que temam mesmo a participação social.
Aliás, o voto obrigatório
não é um mecanismo através do qual os grupos e as classes dominantes extorquem
da população a legitimidade de que tanto o sistema necessita? E considerar os
votos brancos e nulos como “inválidos” não acaba por desprezar a vontade de
parte significativa dos eleitores? Tal proceder não é tão antidemocrático quanto
o voto obrigatório?
Talvez ninguém tenha sido
tão arguto e certeiro em sua crítica ao sistema representativo, que viria a se
tornar quase universal em nossos dias, quanto Rousseau. Mirando o modelo mais
celebrado de seus dias, o autor dizia da “democracia” inglesa:
O povo inglês pensa ser livre e muito
se engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez
estes eleitos, ele é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua
liberdade, o uso, que dela faz, mostra que merece perdê-la (ROUSSEAU, 2005:
187).
Importante para a
democracia, o voto popular? Sim. Importante, a tal ponto que não se poderia
falar, hoje, em democracia sem ele. Suficiente para criar ou consolidar uma
democracia? Não. Insuficiente, a tal ponto que não se poderia falar em
democracia só com ele.
Deve-se reconhecer, pois, a
importância do voto popular. Sem, porém, supervalorizá-lo, tomando-o como o
equivalente de “governo do povo, pelo povo e para o povo”.
Vale ter sempre presente que
o voto é base de um sistema de “alienação de poder”[6]
que, depois da falência do Estado de bem-estar social e do modelo
taylorista-fordista, acentuou seu caráter antipopular e vem mostrando o que ele
realmente é: uma plutocracia[7]
(governo da riqueza). Não por acaso, tal sistema vem sendo amplamente
questionado em quase todos os rincões do Ocidente, inclusive no Brasil.
A frase “Vocês não nos
representam”, vista massivamente durante as “jornadas de junho”, mostrava o
desencanto da população com o sistema representativo brasileiro. Mas ia além,
pois, ali, o apartidarismo desembocava sem dificuldades no antipartidarismo.
Importa dizer que o
desempenho, os escândalos de corrupção e a orientação do governo do Partido dos
Trabalhadores (PT) foram importante combustível para aquelas manifestações. Isto
porque o PT foi, até aqui, a última grande esperança popular de nosso sistema
representativo. Todavia, ao diferir dos governos que o antecederam mais na
forma que no conteúdo, mostrando-se mais conservador do que estes em alguns
pontos, acabou por nivelar os partidos das mais diversas colorações.
Foi assim que o PT
contribuiu direta e enormemente para o descrédito do sistema representativo,
bem como para o desencanto com futebol e a copa que ora presenciamos[8]. Esse descrédito explica o
apartidarismo (defensiva em relação aos partidos) e o antipartidarismo
(ofensiva contra os partidos) vistos nas manifestações de junho e que
assustaram os partidos, incluído aí o PT, partido sabidamente de base popular.
Sem embargo, desde o início
das manifestações de ruas, os governos (sem distinção partidária) optaram por
tratá-las, largamente, pela via da criminalização e da repressão. Tal tratamento
mostrou seus limites. Em diversas cidades, as manifestações persistem, fortes,
indômitas.
Pode-se dizer que aí reside
a motivação para o decreto presidencial aqui em foco. Agora, sem prescindir da força
e da violência, o governo lança mão de estratégias de envolvimento e
convencimento[9].
Suas intenções não são difíceis
de deslindar: 1) procura sinalizar uma resposta “simpática” às manifestações de
rua e extrair daí alguma legitimidade para suas políticas e estruturas; 2)
intenta vigiar, engessar, controlar as manifestações populares, a fim de castrar
sua dimensão contestatória, espontânea e subversiva; 3) almeja cooptar líderes
e movimentos.
Em certo sentido, o decreto
pode ser entendido como um convite de Procrusto[10]. Aceitando-o, talvez as
forças populares sejam podadas, tendo que negociar princípios, até se
enquadrarem e se acomodarem perfeitamente nas estruturas estatais. A este
respeito, reluzem os exemplos do MST e da CUT.
Apenas agora as forças
populares começam a se refazer do golpe[11] que foi a ascensão do PT ao
governo e de tudo o que isso representou. Seria enorme retrocesso para a luta
dos de “baixo”, se, exatamente nesse momento em que começam a se organizar e
fortalecer, elas seguissem o mesmo caminho da CUT e do MST.
Enganam-se aqueles que veem
no decreto o ensaio de uma nova etapa do governo, uma etapa supostamente mais
popular. Representantes do governo já disseram, em resposta a uma das críticas
da oposição, que a “participação social” ora proposta não vai engessar as
decisões estatais nem vai fortalecer a morosidade burocrática. Afirmaram que, em
muitos casos, nem sequer precisariam fazer consultas.
Então, para que participação
social? A resposta é simples: para dar um verniz de legitimidade às políticas e
estruturas do governo. Quanto a isso, importa destacar que, em não poucos
lugares do Brasil, o orçamento participativo, as audiências públicas e as consultas
não têm passado de um simulacro de que os governos se valem para justificar
suas ações, por mais antidemocráticas que estas sejam[12].
Que os movimentos sociais
não se enganem com a iniciativa do governo. Que ninguém se iluda, achando que,
com o decreto 8.243/14, os movimentos sociais poderão trocar a “ação meramente
negativa” pela “ação propositiva”. Claro está que nem governo nem oposição querem
isso.
Já lutamos pelas “Diretas
já” e fomos vitoriosos. Mas, ainda que esta vitória tenha sido importante
naquela conjuntura histórica, hoje ela mostra seus limites. Entendemos que não
basta escolher “nossos representantes”. As ruas disseram ousada e sabiamente:
“Eles não nos representam”. A hora é, creio, de lutar pela “Direta já”.
Não se trata de rechaçar todo
e qualquer diálogo com o(s) governo(s). De igual modo, não se trata de desprezar
por completo e sem mais os votos e os partidos. Mas também não é mais possível
contar apenas com eles, acomodando-se e ignorando seus desvios e insuficiências.
Trata-se, isto sim, de seguir buscando nas ruas a força que nos falta nas
urnas.
Num momento em que os
partidos mostram que sua principal diferença está na cor que usam como símbolo,
num momento em que o sistema partidário resta falido e sem legitimidade, a
democracia direta parece venturoso horizonte a ser buscado. Pé na estrada.
Estamos a caminho, ainda que a caminhada seja dura, incerta, com avanços e
recuos.
Fazendo recorte numa
belíssima canção de Marcelo Camelo, diria “deixa chegar o sonho, prepara uma
avenida, que a gente vai passar”[13].
Referências
bibliográficas
BORON,
Atilio A. Aristóteles em Macondo:
reflexões sobre poder, democracia e revolução. Rio de Janeiro: Pães e
rosas, 2011.
GRAMSCI,
Antônio. Cadernos do cárcere: Maquiavel.
Notas sobre o Estado e a política, Vol.
III. Rio de Janeiro, 2007.
LOSURDO,
Domenico. Democracia ou bonapartismo:
triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: UFRJ; São
Paulo: UNESP, 2004.
MÉSZÁROS,
István. O desafio e o fardo do tempo
histórico: o socialismo no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2007.
OLIVEIRA,
Francisco de. O momento Lenin In
OLIVEIRA, Francisco de e RIZEK, Cibele Saliba (orgs). OLIVEIRA, Francisco de e
RIZEK, Cibele Saliba (orgs). A era da
indeterminação. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
OLIVEIRA,
Francisco de. Hegemonia às avessas
In OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele Saliba (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e
cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. Os pensadores, Vol. I. Editora Nova Cultural, 2005.
WEBER,
Max. Ciência e política: duas vocações.
São Paulo: Editora Cultrix, 1968.
WOOD,
Ellen Meiksins. Democracia contra
capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo,
2006.
[1]
Formado em Ciências Sociais, com
habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do
Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e
Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[2] Deputado
apresenta projeto para suspender criação de conselhos populares In http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ADMINISTRACAO-PUBLICA/469334-DEPUTADO-APRESENTA-PROJETO-PARA-SUSPENDER-CRIACAO-DE-CONSELHOS-POPULARES.html.
[3] É problemático
tratar o político como profissional. Primeiro, por circunscrever a atividade
política ao âmbito dos espaços oficiais/institucionais de poder. É consabido
que a atividade política se faz presente nas mais diversas esferas da vida
social e não é monopólio de um grupo de indivíduos apenas. Segundo, que, para
tratá-lo como profissional, seria necessário definir o político profissional
mais ou menos como Max Weber o fez em seu célebre ensaio (Ciência e política: duas vocações). Para o sociólogo alemão,
“político profissional” é aquele que “vive da política”. Mas aí, então, já não
haveria surpresa com o grau de confiança que tal sujeito tem da população. Outra
coisa problemática na pesquisa foi a diferenciação de político e prefeito. Mas
o cargo de prefeito não é também ele um cargo político?
[4] Bombeiros são os mais confiáveis;
políticos não In http://www.ac24horas.com/2014/05/07/bombeiros-sao-os-profissionais-mais-confiaveis-no-brasil-politicos-sao-os-ultimos/
[5] Eleitor
não quer votar. “Tragédia”,
diz Cristovam In
http://www.brasil247.com/pt/247/poder/139369/Eleitor-n%C3%A3o-quer-votar-Trag%C3%A9dia-diz-Cristovam.htm
[6] Sobre o tema da
alienação do poder, além Do contrato
social (obra clássica de Rousseau), recomendo ler O desafio e o fardo do tempo histórico, de István Mészáros. Destaco
a seguinte passagem: “o Estado moderno, como construído sobre o fundamento
material do sistema do capital, é o paradigma
da alienação no que concerne aos poderes de decisão
abrangentes/totalizantes. Seria, portanto, extremamente ingênuo imaginar que o
Estado capitalista poderia de bom grado ceder os poderes alienados de decisão
sistêmica ao ator rival que opere dentro da estrutura legislativa do
parlamento”. Noutra passagem, diz o autor que o capital é uma “força extraparlamentar por excelência
cujo poder de controle sociómetabólico não pode de maneira alguma ser
restringido pelo parlamento. É por essa razão que o único modo de representação
política compatível com o modo de funcionamento do capital é aquele que efetivamente nega a possibilidade de
contestar seu poder material”
(MÉSZÁROS, 2007: 288-289) (grifos do autor). Ainda sobre o mesmo tema, será
instrutivo ver Democracia ou
bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal, de Domenico
Losurdo.
[7] No que se fere ao
tema do governo ou poder da riqueza, recomendo a leitura de Aristóteles em Macondo: reflexões sobre
poder, democracia e revolução (de Atilio A. Boron) e Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico
(de Ellen Meiksins Wood). Para esta autora, “O capitalismo é estruturalmente
antitético à democracia não somente pela razão óbvia de que nunca houve uma sociedade capitalista em que
a riqueza não tivesse acesso privilegiado ao poder, mas também, e
principalmente, porque a condição insuperável de existência do capitalismo é o
fato de a mais básica das condições de vida, as exigências mais básicas de
reprodução social, ter de se submeter aos ditames da acumulação de capital e às
‘leis’ do mercado” (WOOD, 2006: 8) (grifos meus).
[8] O governo vem
mostrando diariamente sua hostilidade para com a participação popular,
reprimindo e criminalizando os que, mostrando independência, ousam sair às ruas
em manifestações. Desse modo, as atuações do governo quedam entre o paradoxal e
o esdrúxulo. Por um lado, o governo faz investimentos gigantescos para receber
estrangeiros nesta copa. Por outro, trata os povos originários, que
recentemente saíram às ruas de Brasília exigindo pacificamente a observância de
seus direitos territoriais, com balas, bombas e cassetetes. Para a FIFA e
algumas poucas empresas, esta será, realmente, a “copa das copas”.
[9]
Sobre o tema, a obra de Antônio Gramsci continua imprescindível: Cadernos
do cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política, Vol. III.
[10] Procrusto, também conhecido como "Procrustes", "Procusto", "Damastes" ou "Polipémon", é
um personagem da mitologia grega, que faz
parte da história de Teseu. Procrusto era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em sua casa, tinha
uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual convidava todos os
viajantes a se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiados altos, ele amputava o
excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que tinham pequena estatura
eram esticados até atingirem o comprimento suficiente. Uma vítima nunca se
ajustava exatamente ao tamanho da cama porque Procrusto, secretamente, tinha
duas camas de tamanhos diferentes In http://pt.wikipedia.org/wiki/Procusto.
[11]
Sobre esse golpe, Oliveira (2007: 267) argumenta que “A transferência do PT
para o interior do governo imediatamente provoca a paralisia dos movimentos
sociais”. E “Já em seu primeiro mandato”, prossegue o autor em outro texto,
“Lula havia sequestrado os movimentos sociais e a organização da sociedade
civil. (...) Os movimentos sociais praticamente desapareceram da agenda
política” (OLIVEIRA, 2010: 25).
[12] Quem pôde
acompanhar, bem sabe que, no caso das hidrelétricas do Madeira e do Xingu, a
“participação popular” ou redundava no que o governo e os consórcios queriam ou
era sabotada e ignorada.
[13]
Trecho da canção Conversa de botas
batidas.
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